terça-feira, 30 de agosto de 2011

Um pouco do Estilo Missões


Porta de casarão muito bem conservado em São Leopoldo (RS). Está indicado para preservação por um decreto, em um raro caso de consideração deste estilo numa listagem oficial. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)

Brega, cenográfico, exagerado, descontextualizado. Estes são apenas alguns dos adjetivos normalmente atribuídos a um estilo arquitetônico que pode ser definido por “estilo Missões”. Na mesma vertente neo-colonial também figura o “neo-colonial hispânico”, “hispano-americano” ou “espanhol”, na época conhecidos como “estilo mexicano” e “bungalows californianos”. Este misto de diferentes influências no geral busca imitar esteticamente o estilo das missões espanholas no méxico, e mais tarde, a arquitetura civil destas colônias, cujo revival teve muita difusão na Califórnia-EUA.

Frontão do Palacete Herbert Von Brixen-Montzel (1932), projetado por João Antônio Monteiro Neto, na rua Santa Terezinha 201, em Porto Alegre (RS) (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010).

O nome do “estilo missões” vem de sua denominação norte-americana: Missions Revival. Sua origem nos Estados Unidos remonta a década de 1890. Mais tarde o repertório visual evoluiu para o Spanish Colonial Revival, que além das missões inspirava-se também na arquitetura residencial das colônias espanholas, e até mesmo para o Pueblo Revival, que imitava construções simples dos pueblos mexicanos e que aparentemente não desembarcou por aqui.
No Brasil, difundiu-se principalmente após a contraditória década de 30, que coincidiu com o início da penetração dos ideais modernista, Art Déco e outros minoritários. O estilo teve direito até a uma versão local: o neo-colonial brasileiro, que buscava a releitura das construções tradicionais luso-brasileiras. Este, porém, teve pouca ou nenhuma penetração no Rio Grande do Sul. Talvez por influência da proximidade física e cultural com a região platina, os gaúchos adotaram as edificações chamadas à época de “mexicanas”, em detrimento a sua versão brasileira.


Exemplar em Presidente Lucena (RS) demonstra a penetração do estilo mesmo em localidades mais isoladas. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

As edificações influenciadas por alguma vertente deste estilo marcaram a paisagem urbana residencial brasileira, pois tiveram sua época de ouro em que dominaram boa parte da produção. Porto Alegre teve bairros inteiros influenciados pelo estilo, como o Petrópolis e Vila Assunção. No segundo, até mesmo a igreja do bairro foi construída nestes parâmetros, algo relativamente raro. Em outros locais também moradias de interesse social foram construídas com esse estilo.


Igreja Nossa Senhora da Assunção, em Vila Assunção - Porto Alegre (RS), influenciada pelo estilo, mas sincretizado com os arcos góticos. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

É patrimônio?


A oposição acadêmica ao estilo missões e suas vertentes, que impede sua patrimonialização, é fundamentada em diversos argumentos, alguns bastante plausíveis. O primeiro deles é a completa desvinculação da realidade brasileira – trata-se de um estilo onde a “maquiagem”/decoração é pensada sem aplicação das proporções e regras de composição clássicas. Isto torna o estilo missões bastante “cenográfico”, pois seu aspecto está vinculado a uma realidade cultural completamente distinta. Este argumento desqualifica a qualidade do projeto arquitetônico, que aparenta ser mero produto imobiliário, resultante de uma “moda” que carecia de vinculação com a história local.


Exemplar inventariado como patrimônio cultural em 1996 pela prefeitura, em Campo Bom (RS). Infelizmente, o inventário nesta cidade não quer dizer muita coisa, pois demolições são autorizadas sem sequer consultá-lo. De qualquer forma, mostra a preocupação em preservar esse importante período, enquanto se tinha a ilusão de que o inventário serviria para alguma finalidade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2008)

O segundo argumento mais usado é a data de construção relativamente recente dos exemplares. Embora o estilo originalmente tenha surgido no final do séc. XIX, seus exemplares brasileiros alcançaram até o mais tardar dos anos 60. Por algum motivo, aparentemente existe sub-entendida uma data “cabalística” estabelecida pelo senso comum para proteção de patrimônio cultural – costuma-se selecionar apenas edificações anteriores a 1940. Aos poucos, felizmente, esses critérios estão sendo substituídos por uma visão mais fundamentada e baseada na história local de cada cidade.


Exemplar em Três Passos (RS). Este tipo de construção pode ser encontrado em praticamente qualquer cidade, em menor ou maior proporção. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

E por que não?

Não iremos fazer aqui uma defesa categórica e ampla do estilo missões, pois acreditamos que mesmo a valorização desse tipo de edificação também passa pela compreensão de sua debilitada dimensão cultural. Reconhecemos a coerência dos argumentos que comprovam deficiências teóricas deste estilo, que realmente tinha uma conotação bastante cenográfica, mas acreditamos que cada caso deva ser visto com muito cuidado.

Os valores que definem um bem de interesse cultural são muitos. A definição de patrimônio cultural implica numa visão ampla, que não considere apenas os critérios de “relevância arquitetônica” (típico da análise de projeto e sua vinculação com correntes teóricas) e de “história” (típica da história positivista, que exalta grandes eventos ou personagens importantes que a edificação pode ter abrigado). Existe uma série de outros valores possíveis, como o técnico (construção com técnicas construtivas peculiares), paisagístico (formação de conjuntos ou paisagens urbanas juntamente com outros prédios ou entorno natural), funcional (edificação simbólica de um uso consagrado), social (reconhecimento popular do valor da edificação) entre outros.


Interessante residência de Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

O estilo missões e suas tendências representam um capítulo importante na história da arquitetura brasileira, e na própria história cultural do país. Juntamente com o Art Déco e com os outros revivals, ele marca o cenário que envolve o durante e o pós Segunda Guerra Mundial, e a adoção da cultura norte-americana como parâmetro, em detrimento aos modelos europeus típicos Beaux-Arts seguidos fielmente até então. A ampla penetração que o “bungalow californiano” teve pode de fato não relacionar-se com a história da arquitetura pretérita local, mas foi representativa de uma nova “realidade cultural” do pós-guerra onde, bem ou mal, o predomínio da indústria automobilística, do cinema holywoodiano e dos usos e costumes norte-americanos passaram a ser referência. É, juntamente com o Art Déco e o modernismo, marcante da "globalização" dos modelos de construção em todo Brasil.


Casa de veraneio típica de Torres (RS), uma das poucas que sobreviveram à pressão imobiliária. Sem proteção nem perspectivas, tem os dias contados. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

Também é importante ressaltar o valor do estilo missões para a história da arquitetura e do design brasileiro. O estilo, como toda “tendência”, foi acompanhado de todo um esforço industrial para a produção de peças compatíveis com sua linguagem. A edificação era pensada em conjunto com a mureta, portão, luminárias, garagens como corpos separados, jardins, mobiliário e esquadrias específicas. O papel do arquiteto deixava de ser apenas o de projeto da edificação em si , para se extender a arquitetura de interiores e paisagismo – esse aspecto “moderno”dos estilos difundidos nos anos 30 é frequentemente ignorado e atribuído apenas ao modernismo.

Em muitas localidades, também foi o estilo missões o primeiro a introduzir uma série de inovações na construção, como o uso de concreto armado. Também ampliou a valorização da salubridade no projeto dos ambientes, propondo amplos recuos em relação aos limites do lote e da rua, a abertura de grandes janelas para circulação de ar e iluminação.

Como paisagem urbana, alguns exemplares são importantes por integrarem conjuntos homogêneos de edificações unifamiliares construídas com a mesma linguagem. A qualidade desses ambientes urbanos enquanto conjuntos não deveria ser desconsiderada, pois relaciona-se diretamente com a qualidade de vida dos bairros. Alguns elementos dessas edificações acabaram tornando-se marcos urbanos, o que é o caso principalmente de algumas torres que marcam esquinas.


Casa situada em Hamburgo Velho, sítio histórico de Novo Hamburgo (RS), determinante para o perfil heterogêneo do bairro (foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2011)

A inserção em sítios históricos também é importante, mesmo acompanhados de edificações de diferentes épocas, pois além de representar um período, é completamente compatível com a paisagem urbana tradicional e com o modelo tradicional de parcelamento do solo.


Pequena residência em Dois Irmãos (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

Acreditamos que estas qualidades, bem como outras que podem surgir ao analisar com sensibilidade e critérios cada caso, devem ser levadas em consideração antes de simplesmente descartar edificações construídas neste estilo de inventários de patrimônio cultural. Verdades prontas não podem ser implantadas sem problematização, sob o risco de perdas irreparáveis, como já aconteceu com a arquitetura tradicional luso-brasileira e com o estilo eclético, alvos de preconceitos em diferentes períodos.

Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também:
- SEGAWA, Hugo: Arquiteturas no brasil 1900-1990. São Paulo: Ediusp, 1999. 2ª Edição.

- WEIMER, Günter: Arquitetura Modernista em Porto Alegre entra 1930 e 1945. Porto Alegre: Unidade Editorial de Porto Alegre, 1998.

- O estilo missões em São Paulo.

- Recente liminar que proíbe demolição de um casarão neo-colonial hispano-americano em Juiz de Fora - MG - um caso raro e aparentemente único até então. Os conceitos estão mudando.

*adicionado- Conjunto de casarões que seriam demolidos pelo Colégio Santo Agostinho, alguns em estilo missões, serão tombados e restaurados em Belo Horizonte: Links: [1 | 2 | 3]. Os conceitos estão mudando mesmo!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

São Leopoldo (RS) e o potencial dos sítios históricos informais

Conjunto histórico não tombado na entrada de São Leopoldo (RS): aguardando valorização. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

O patrimônio cultural não é apenas aquele tombado pelos institutos federal, estadual e municipal. O tombamento apenas declara oficialmente o valor do bem e o comprometimento do poder público em ajudar a mantê-lo. Por falta de vontade política, existem em nossas cidades centenas de potenciais “patrimônios culturais” não oficializados. São edificações isoladas ou mesmo sítios históricos informais que conservam-se minimamente, à revelia dos departamentos e leis preservacionistas.

Inseridos hoje na lógica de mercado, são meros objetos imobiliários aos quais aplica-se a legislação genérica de índices de aproveitamento, taxa de ocupação, etc. A valorização dos imóveis prenuncia o breve desaparecimento destes bens tão significativos.

Para esta breve análise, tomaremos como exemplo a cidade de São Leopoldo (RS). Antiga sede administrativa das colônias alemãs vinculadas ao governo imperial, tem uma história bastante vinculada a imigração. Seu valor simbólico lhe rendeu, ano passado, o título oficial de “Berço da Imigração Alemã”. O traçado ubano da área central da cidade, quase em tabuleiro de xadrez (um pouco irregular), data da fundação do povoamento.
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No entorno do Museu do Trem, um conjunto interessante onde bastariam diretrizes simples de fenestrações pra valorizar o entorno da antiga estação, uma área consagrada na história da cidade. Os dois prédios com as janelas e portas já completamente desfigurados, poderiam receber aberturas adequadas aos anseios do comércio e, ao mesmo tempo, adequadas ao ritmo de fenestrações típico da rua. O exemplar Art Déco em primeiro plano precisaria entrar na lista de preservação, que hoje o ignora. (Foto e montagem: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Percorrendo as ruas da área central de São Leopoldo, percebe-se uma nítida fragmentação da paisagem urbana. Os zoneamentos extremamente permissivos continuam priorizando a verticalização da área central, no traçado tradicional que não comporta o trânsito excessivo trazido pela densificação.

Conjunto sucateado no entorno imediato do Museu do Trem: falta de planejamento integrado. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Trocando em miúdos: a malha urbana continua a mesma dos tempos coloniais, onde recebia orientações do código de posturas e estava adequada aos pequenos casarios e sobrados. Mas nestes mesmos espaços, o próprio plano diretor incentiva, através do seu desplanejamento urbano, a ocupação massiva e verticalizada.

A cidade tradicional desaparece, devorada pelo caos. A mera especulação financeira é aplicada sem restrições e sem sensatez. Definitivamente, não se está construindo uma cidade para o futuro. Constrói-se a decadência e a obsolência do amanhã, através desta preocupação apenas com o hoje, aplicando modelos de desenvolvimento ultrapassados.

Claro conflito de escalas em São Leopoldo. O patrimônio "ficou sobrando". (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Nota-se o mesmo processo que ocorre em grande parte das nossas cidades: o mercado imobiliário, hoje importante pilar econômico, precisa girar, e trabalha constantemente na criação e re-criação de demandas e de necessidades. É insuflada na população a necessidade da troca constante de casas e apartamentos. A justificativa mais comum é a da insegurança - que curiosamente, é uma consequência criada justamente por esse processo. A população não apenas muda-se de uma residência para um apartamento (ou condomínio fechado), mas muda-se constantemente também de um apartamento ao outro, novo e recém-construído, como uma forma de reafirmação do status social. O apartamento antigo passa para as classes inferiores, as residências, passam à obsolência e por estarem no início deste ciclo, entram na fila para a demolição.

O modelo atual de preservação

O modelo “desesperado” adotado pelo poder público de São Leopoldo há alguns anos atrás, foi decretar uma listagem simplificada de “indicação para preservação”. Este documento selecionou certas edificações por seu valor e visava garantir sua continuidade. Foi uma medida louvável para preservar emergencialmente as casas listadas, enquanto não havia tempo hábil e recursos para contratação de um Inventário, como recomenda a legislação estadual.
Desconhecemos os critérios que nortearam esta seleção, e por isso não entraremos neste mérito. Mas, por termos percebido a não inclusão de uma série de edificações interessantes, consideramos importante para uma futura revisão e oficialização na forma de Inventário do Patrimônio Cultural, a consideração de que o valor de um bem histórico vai além da sua qualidade arquitetônica, ou de ter sido palco de episódios históricos representativos. A valoração também advém de uma série de outros valores, como o técnico (construção com técnicas construtivas peculiares), paisagístico (formação de conjuntos ou paisagens urbanas juntamente com outros prédios ou entorno natural), funcional (edificação simbólica de um uso consagrado), entre outros.

Durante a visita com o Amigos do Morro do Espelho, encontramos este bem relacionado na lista como indicado para preservação, completamente desfigurado. (foto: Jorge Luís Stocker Jr.)

Por termos encontrado algumas edificações listadas já completamente desfiguradas ou demolidas, é possível concluir sem medo que esta política de preservação já foi ultrapassada há muito tempo pelas artimanhas do mercado imobiliário. E pior, ela entra em conflito direto com o próprio Plano Diretor da cidade. Ao permitir construções com altíssimos IA e TO em ruas onde situam-se grande parte dos bens indicados para preservação, a própria administração pública sugere a obsolência dos bens que julga adequado preservar, desvalorizando a ambientação do seu entorno e acirrando a especulação do próprio lote onde se situam. O processo acaba na inevitável demolição do bem histórico, pois tira o sentido de sua preservação e causa a obsolência de seu uso.

O potencial ainda existente
Entrada da cidade, visual tradicional marcada pela torre neogótica. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

A erradicação da cidade tradicional entra em conflito direto com as perspectivas locais de tornar-se referência cultural, atrativo turístico integrante da Rota Romântica e de fato “um berço da colonização alemã”. Apesar deste inglório processo em andamento, ainda é possível encontrar resquícios da cidade tradicional.

Ao longo das ruas Lindolfo Collor, José Bonifácio e Marquês do Herval, por exemplo, encontramos uma série de conjuntos ainda harmônicos em suas escalas e usos. Na entrada da cidade, o conjunto que será agredido pelo novo centro administrativo praticamente define São Leopoldo há mais de cem anos - a qualidade do conjunto é tanta que parece tratar-se de um dos poucos espaços históricos capazes de gerar imaginabilidade, segundo critérios de Kevin Lynch (pois evocam uma imagem forte). Com o correto mapeamento destas áreas remanescentes, e com a aplicação de critérios adequados de preservação, poderiam se tornar áreas modelo para a cidade. A delimitação de sítios históricos potencializaria a reconstrução da identidade leopoldense (ou manutenção dos resquícios dela).

Encontro de bens históricos na Rua Lindolfo Collor. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)


Não se trata de congelar a cidade, mas de planejá-la corretamente. Os critérios são simples e amplamente adotadas em legislações municipais de sítios históricos. Pode-se, por exemplo, classificar as edificações em níveis de preservação:
P1 – Nível de preservação máximo. Edificações indicadas para tombamento, portadoras de valor histórico e cultural inestimáveis. São referências na paisagem urbana, ícones de determinadas épocas, ou edificações que encontram-se bastante íntegras em sua originalidade.
P2 – Nível de preservação médio. Edificações com certo nível excepcionalidade, mas passíveis de reciclagem e readequação para novos usos, condicionados à manutenção de suas fachadas, escala urbana e volumetria.
P3 – Nível de preservação baixo. Edificações isoladas com pouco conteúdo a ser preservado, ou edificações que complementam ou formam conjuntos com outros bens históricos. São passíveis de completa readequação, inclusive com modificações nas fachadas, contanto que sejam respeitados critérios de volumetria, fenestrações e harmonia com o restante do conjunto ou com a paisagem urbana circundante.
P4 – Edificações passíveis de demolição. Edificações com certo conteúdo histórico já bastante desfiguradas e sucateadas. Podem ser demolidas, contanto que a nova edificação seja construída dentro de critérios de adequação ao entorno.
Casa demolida, em frente ao conjunto da foto anterior. Não estava indicada para preservação, ao contrário das outras três esquinas que lhe fazem frente e que compunham um conjunto diferenciado. Poderia ser indicada ao nível de preservação P3, garantindo o uso com retorno econômico. (foto: Elis Regina Berndt/2008)
No seu lugar, o vazio urbano de um posto de combustíveis - causando a desvalorização do conjunto indicado para preservação e a fragmentação da percepção do espaço. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Os bens remanescentes precisam ser vistos na forma de conjuntos, e não isoladamente. A qualidade destes espaços advém da ocupação harmônica dos lotes, a relação harmônica de cheios e vazios tanto dos lotes (com a sequência de construções igualmente construídas no alinhamento) quanto das fenestrações (sequência verticalizada de portas e janelas, elementos particulares de cada prédio que formam ‘eco’ no conjunto). Estes espaços tradicionais ainda subsistem tranquilos, aprazíveis para morar, caminhar e vivenciar o espaço urbano. Simples iniciativas podem qualificar ainda mais estes espaços e torná-los atrativos também ao turismo, sem promover gentrificação ou criação de falsos ambientes.


Casa de 1900, provavelmente ainda mais antiga antes da construção da platibanda: representativa de um modelo típico e de uma fase do código de posturas da cidade. Poderia retomar sua dignidade com um mínimo de movimentação e sem falso histórico. A casa fica em frente a entrada do Museu do Trem. (Foto e desenho: Jorge Luís Stocker Jr/2011)

A população ainda se apropria do espaço nas áreas tradicionais. Será isso possível com a densificação absurda? Futebol de rua na José Bonifácio. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008).

É possível ver pelas fotos que a valorização destes poucos conjuntos restantes já tarda em ser efetivada. Caso não sejam adequadamente valorizados a tempo, podem acabar desaparecendo, deixando uma lacuna irrecuperável na cidade. Como diz Leonardo Benevolo, os centros históricos

“(...)não nos interessam porque são belos ou históricos, mas porque indicam uma possível transformação futura de toda cidade em que vivemos” (A Cidade e o Arquiteto, p. 71)

A ambiência ainda inalterada de sítio histórico na Rua José Bonifácio, pode se perder se o conjunto de casas indicadas para preservação não for considerada como um todo. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

A partir do momento em que a cidade se torna genérica e a população, indiferente a sua própria forma; a partir do momento em que a insegurança toma conta das ruas (pois a população está trancafiada em seus edifícios e condomínios intra-muros), a cidade torna-se obsoleta em todos os sentidos. Não traz qualidade de vida para a população e nada representa. Estes espaços históricos são incompatíveis com a legislação genérica dos planos diretores, como diz Leonardo Benevolo:
O centro histórico foge, em princípio, ao mecanismo vigente: formou-se num passado mais longínquo e muitas vezes é o único elemento aceitável do assentamento existente, já pronto para ser incluído na futura cidade moderna.”
(A Cidade e o Arquiteto, p. 77)

Parece ser o caso de São Leopoldo: o Plano Diretor atual sugere modelos ultrapassadíssimos de ocupação da malha urbana. Há precedentes por todo o mundo que comprovam a obsolência deste desenvolvimento especulativo, pois só traz decadência a longo prazo e aumenta os custos públicos para a futura requalificação de áreas, constante readequação das pistas de rolamento ao trânsito crescente, combate a insegurança e depredação do meio urbano. Não se trata de impedir a construção de edifícios em altura, mas de zonear áreas adequadas a estes.
Os sítios históricos (hoje, ainda informais e fragmentados) parecem ser o único elemento da área central apto a participar da cidade do futuro, pois é provido de sentido, valor e qualidades. Basta enxergar o potencial e valorizar enquanto há tempo.

Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também
- Visitando nossa cidade - contruções históricas - Blog Amigos do Morro do Espelho
- Visitando uma cidade escondida - pós visita - Blog Amigos do Morro do Espelho

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Hoje, 17 de agosto, comemora-se o Dia Nacional do Patrimônio Histórico.

Nós, brasileiros e gaúchos, certamente temos muito a comemorar. Afinal, somos um estado plural como o Brasil e portanto, nosso patrimônio cultural é muito diversificado.

Podemos comemorar o nosso legado missioneiro, muito bem expresso pelas ruínas de São Miguel Arcanjo, declaradas patrimônio da humanidade pela UNESCO. Além delas, as dezenas de imagens religiosas esculpidas pelos índios catequizados e pelos jesuítas que nosso Estado ainda abriga .

Uma das imagens missioneiras em exposição permanente no Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

Comemoremos, quem sabe, a imigração açoriana que completará 260 anos em 2012. Crucial para nossa identidade enquanto gaúchos, nos legou cidades históricas como Triunfo, Santo Amaro, Pelotas, Rio Pardo e tantas outras, que até hoje guardam em suas ruas a história
deste povo tão simples, receptivo e acolhedor.


Um pouco do cotidiano tranquilo da Vila de Santo Amaro, em General Câmara (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008)
Casarão Mendonça, em Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
Um pouco do conjunto histórico colonial de Triunfo (RS). (foto: Elis Regina Berndt/2008)

E o que dizer do expressivo contingente de imigrantes alemães que aqui se instalaram, a partir de 1824, na colônia imperial de São Leopoldo e posteriormente, espalharam-se por colônias particulares em todo a extensão do Rio Grande do Sul? Nosso estado abriga lugares de memória inigualáveis, como o conjunto histórico de Ivoti (RS), o conhecido Buraco do Diabo, tombado pelo IPHAN, compreendendo a Ponte do Imperador e o núcleo de casas enxaimel; e o conjunto urbano de Dois Irmãos (RS), com suas dezenas de casas históricas devidamente tombadas pela Prefeitura Municipal. E não esqueçamos a Casa Schmitt-Presser, de Novo Hamburgo, primeira residência enxaimel tombada pelo IPHAN. Fantástico exemplar de arquitetura nesta técnica construtiva.
Casa Schmitt-Presser, primeiro enxaimel tombado pelo IPHAN nos anos 80. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
A Av. São Miguel, de Dois Irmãos (RS), apresenta uma série de casas históricas. É bastante significativa a quantidade de bens tombados pela municipalidade nesta via. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

E como esquecer os imigrantes italianos, aqueles que enfrentaram os terrenos íngremes e hostis da serra gaúcha, a partir de 1870? Esta imigração nos legou um pujante setor vitivinicultor, de qualidade reconhecida internacionalmente. Indispensável lembrar a bela Antônio Prado, patrimônio nacional pelo IPHAN com suas dezenas de casarões centenários de madeira, e a recentemente tombada Santa Tereza, não por conta do valor de alguns bens históricos em particular, mas pelo conjunto harmônico que compõe sua paisagem cultural típica.

A bela paisagem urbana típica de Santa Tereza (RS). (Foto gentilmente cedida por Rene Hass)

Os casarões típicos de Antônio Prado (RS). (foto gentilmente cedida por Rene Hass).

E as imigrações polonesa, judaica, pomerana, e a população afro-descendente, que tanto moldaram nossa cultura? Entre tantas influências, eis o povo gaúcho. Representado não apenas aquele cidadão pilchado com a vestimenta fetichizada pelo MTG, mas por todos cidadãos
destas terras ao sul do Brasil, onde muitas culturas vieram somar sua contribuição a um todo que ainda pulsa e vibra.

Temos muito a comemorar, sim.

Mas infelizmente, nossa comemoração será limitada. Pois aos poucos, estes motivos para comemoração vão se esvaindo. O ritmo com que nossa diversidade cultural é valorizada ainda não acompanha, nem de longe, a velocidade com que bens insubstituíveis vão desaparecendo do nosso imaginário e das nossas cidades.
A educação patrimonial ainda é incipiente. Ofegante, corre para deter a fúria do mercado imobiliário, que deseduca e atropela diariamente referências culturais sem deixar rastros. Não consegue, e nunca vencerá sozinha e a tempo esta luta inglória.

A comemoração é, portanto, feita com tristeza e esperança.

Esperança de que, algum dia, finalmente a Prefeitura Municipal de Campo Bom (RS) reconheça a importância de sua história. Que o primeiro cemitério da imigração alemã construído no Rio Grande do Sul, hoje em ruínas, venha a ser valorizado, em reconhecimento aos imigrantes alemães ali enterrados nos primeiros anos da colonização. Que seja tombado o templo evangélico, por sua importância como marco urbano na paisagem já tão descaracterizada.
Lápides de valor inestimável estão abandonadas e sujeitas a depredação em Campo Bom (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

... de que o centro histórico de Hamburgo Velho, no entorno imediato da Casa Schmitt-Presser, venha um dia a ser devidamente oficializado e tombado como sítio histórico. Que deixe de ser um corredor de passagem do trânsito em um bairro fantasma, que volte a ter vida, a pulsar cultura. Que receba um mobiliário urbano adequado à sua importância.

A Casa Kayser, enxaimel, e o antigo Evangelisches Stift/Lar da Menina, tombado e arruinado; em Hamburgo Velho, bairro de Novo Hamburgo (RS). (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

... que Ivoti se conscientize de que não é saudável relegar apenas ao núcleo de casas enxaimel tombado o papel de representar sua história. Uma série de residências e prédios históricos ainda pedem socorro pela Av. Presidente Lucena, outros muitos já sumiram, com autorização da própria administração. Outros, apesar de tombados pela municipalidade, correm o risco de perder sua ambientação devido a intervenções grosseiras no seu entorno.
Um dos remanescentes conjuntos na Av. Predidente Lucena, de Ivoti, a cada dia mais descaracterizada, com incentivo de um plano diretor permissivo e a valorização apenas do núcleo histórico afastado e desvinculado da malha urbana. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2007)

...de que São Leopoldo faça jus ao título recebido oficialmente em 2010, de Berço da Imigração Alemã no Brasil, e valorize as migalhas que sobraram de seu centro histórico realizando um inventário completo e digno. Que enfim, não aconteçam mais casos alarmantes como a infeliz construção do novo centro admnistrativo, que tristemente, segue em andamento, juntamente com a erradicação autorizada dos últimos bens culturais ao longo da rua Grande/ Independência.

Construção em andamento, substituindo um prédio Art Déco (link) que fazia conjunto com o remanescente que ainda aparece à esquerda. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011).

... de que a cidade de Ilópolis saiba dar prosseguimentos à ação desencadeada pelo Museu do Pão, e agilize-se para valorizar os últimos casarões autênticos que ainda guarda em seu território urbano. Eles não são apenas velhos casarões de madeira italianos, e vão bem além de potencial turístico. Eles são parte da história da população local, e sem elas, a cidade perderá seu significado.
Um dos casarões restantes na área central de Ilópolis (RS), que ainda não contam com nenhum tipo de proteção. (Foto: Elis Regina Berndt, 2008).

... de que a nossa capital Porto Alegre dê atenção especial ao seu centro histórico, tirando do abandono e depredação bens importantíssimos como o Viaduto Otávio Rocha, tombado. Mas que também não siga permitindo a demolição de bens históricos valendo-se de critérios exclusivistas e que não levam em conta a diversidade e a inserção das edificações em um conjunto.
E assim poderíamos citar uma infinidade de casos que clamam por atenção e por uma solução.
Viaduto Otávio Rocha, tombado, agoniza em Porto Alegre (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010).

...Enfim, as tristezas são várias, mas as esperanças são muitas. Enquanto o futuro é apenas esperança, vamos continuar desempenhando nosso humilde papel, que é utilizar a ferramenta que temos em mãos (internet) para divulgar e problematizar a continuidade do patrimônio cultural.

“Só a democracia participativa, aliada à informações e educação, poderá assegurar que as escolhas certas serão utilizadas”
(Jacques Dalibard)

A população precisa estar preparada e munida de informação para exercer sua cidadania. Dadas as condições atuais, no deserto em que predomina apenas a (des)educação promovida pelo mercado imobiliário, é impossível esperar engajamento social nesta luta.

Os problemas existem, mas precisam ser divulgados para que sejam solucionados. O patrimônio precisa ser, enfim, visto para ser apropriado pela população.

Parabéns, patrimônio cultural gaúcho.

Jorge Luís Stocker Jr.

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Veja também:

Protesto organizado pela Defender em Porto Alegre, marcando o dia Nacional do Patrimônio Cultural:
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